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29/05/2015 08h05 - Atualizado em 29/05/2015 08h10

'Casamento é sagrado': por que não é crime estuprar a esposa na Índia

Vítimas de violência sexual nas mãos de cônjuges relatam solitárias batalhas por justiça; 10% das mulheres do país dizem ter sido forçadas por marido a ter relações sexuais.

Da BBC

 Rashmi é uma de muitas mulheres indianas que lutam na justiça para que estupro marital seja considerado crime  (Foto: BBC) Rashmi é uma de muitas mulheres indianas que lutam na justiça para que estupro marital seja considerado crime (Foto: BBC)

Estupros por cônjuges não podem ser criminalizados na Índia porque o casamento é sagrado no país, declarou um ministro no Parlamento indiano. O comentário causou polêmica, em meio a casos chocantes de violência sexual cometida por maridos divulgados recentemente pela mídia indiana. O repórter Parul Agarwal, da BBC Hindi (Seção em hindu do Serviço Mundial da BBC), explica a controvérsia:

Amarrando e desamarrando nervosamente um pedaço de pano sobre seu rosto, Rashmi (o nome é fictício) tenta encobrir sua identidade enquanto se prepara para dar uma entrevista para a câmera. "Se o dono da casa que alugo me identificar, serei despejada", ela diz.

Com 25 anos, ela é uma entre as muitas vítimas de estupro marital que lutam por justiça na Índia.

"Para ele, eu era apenas um brinquedo que ele podia usar de maneiras diferentes todas as noites. Quando brigávamos, ele se vingava na cama. Às vezes, eu implorava para ele me deixar em paz porque não me sentia bem, mas ele não aceitava um não, nem mesmo quando eu estava menstruada", diz Rashmi.

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Na Índia, o estupro de uma esposa pelo marido não é crime. E muitos acreditam que o casamento é uma fonte de prazer sexual para o homem, portanto, as mulheres têm de se submeter.

Desigualdade
Em fevereiro, a Suprema Corte da Índia rejeitou o pedido de Rashmi para que o estupro marital fosse declarado um crime. O tribunal disse que não se podia ordenar uma mudança na lei para atender a uma pessoa.

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A história de Rashmi é semelhante à de qualquer outra jovem com bom nível educacional na Índia que se apaixonou por um colega do escritório e se casou com ele. Mas o relacionamento dos dois nunca envolveu "consentimento" e "igualdade", ela diz.

"Me lembro de uma noite, o dia 14 de fevereiro de 2014. Era o aniversário dele. Tivemos uma discussão acalorada e ele quis me forçar a ter sexo. Resisti o quanto pude mas ele não parou. Então, ele enfiou uma lanterna dentro de mim. Fui parar no hospital e continuei sangrando por 60 dias", conta a jovem.

Ativistas vêm, já há algum tempo, fazendo campanha para que o estupro marital seja criminalizado na Índia.

Após o estupro e assassinato de uma estudante por uma gangue em Nova Déli, em dezembro de 2012, formou-se um comitê para sugerir reformas à lei criminal no país. O comitê recomendou que o estupro marital passasse a receber o mesmo tipo de punição que qualquer outro estupro.

O governo, liderado na ocasião pelo Partido do Congresso, rejeitou a recomendação.

Vítimas de estupro marital, no entanto, se recusam a abandonar a batalha.

Pooja, mãe de três filhas, sofreu em silêncio por 14 anos antes de ganhar coragem para abrir um processo contra o marido por violência doméstica. A principal razão para a separação, ela diz, foi "sexo violento e à força".

"Eu não tinha direito de dizer não porque era sua esposa. Eu estava cuidando das crianças e da casa sozinha, mas ele nunca teve qualquer consideração."

Hoje, Pooja está separada do marido, mas se recusa a lhe dar o divórcio porque isso permitiria a ele se casar de novo.

"Não posso deixar que ele me use e depois encontre outra mulher e destrua a vida dela. Não quero o divórcio, quero que ele seja punido", ela diz.

 Governo rejeitou recomendação para equiparar ato sexual forçado dentro do casamento a outros tipos de estupro  (Foto: BBC) Governo rejeitou recomendação para equiparar ato sexual forçado dentro do casamento a outros tipos de estupro (Foto: BBC)

Comum
O advogado da Suprema Corte Karuna Nundy, que se especializa em litígios envolvendo direitos humanos e Justiça de gênero, diz que a lei indiana oferece pouco apoio para vítimas de violência marital.

"No momento, uma esposa pode abrir um processo com base na lei de violência doméstica, e ele será julgado em uma corte civil. A lei dá à mulher o direito legal de se separar do marido alegando crueldade", explica o advogado.

"Mas qual é o recurso legal para punir o ato do crime? Qualquer ato sexual que é forçado ou está sendo feito sem o consentimento da mulher é crime. O relacionamento da vítima com o autor do crime não faz diferença", argumenta o advogado.

Estudos feitos ao longo dos anos indicam que violência sexual no casamento é comum na Índia.

Dez por cento das entrevistadas na última Pesquisa Nacional de Saúde da Família feita no país disseram ter sido forçadas pelo marido a ter relações sexuais. A pesquisa, feita entre 2005 e 2006, envolveu 124.385 mulheres de 25 Estados indianos.

Um terço dos homens entrevistados em outro estudo, feito no ano passado pelo International Centre for Women (ICRW) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNPFA), admitiu ter forçado suas esposas a ter relações sexuais. O estudo envolveu sete Estados do país. Em cada estado, 9.205 homens e 3.158 mulheres com idades entre 18 e 49 foram entrevistados.

As vítimas do estupro marital dizem travar uma batalha solitária porque seu sofrimento não se enquadra em nenhuma das categorias do sistema legal indiano. E ainda por cima, elas dizem, a sociedade com frequência as culpa por denegrir a instituição do casamento.

Mesmo assim, um grupo de defesa dos direitos dos homens, a Save the Family Foundation, adverte contra a criminalização do estupro marital.

"Nós já observamos como a lei 498A, contra o dote, foi utilizada de maneira errônea por mulheres na Índia para assediar homens e suas famílias. A Central Woman Commission of India (Comissão Central de Mulheres da Índia) admitiu que muitos casos de estupro relatados anualmente são falsos. Como pode alguém provar o estupro marital? Levar o quarto para o tribunal é uma ideia perigosa", diz o porta-voz do grupo.

A entrevista com Rashmi vai chegando ao fim. Ela retira o pano que cobre seu rosto e diz: "Em cada audiência no tribunal, vejo meu marido e sua família, não parecem afetados nem sentem qualquer remorso pelo que aconteceu".

"Por que uma mulher tem de esconder sua identidade para parar de ser acuada? Por que sou mal vista por dizer ao mundo que fui estuprada pelo meu marido?"

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