SÃO PAULO — Na semana passada, o empresário iraquiano Edwin Shuker, de 63 anos, fez uma jornada emocionante. Ele saiu de Londres, onde mora desde o início dos anos 1970, e foi até Mossul, no Iraque, cidade que ficou sob domínio do Estado Islâmico até julho de 2017, para uma visita especial. Seu objetivo era conhecer uma importante sinagoga, construída em 1870. A construção sobreviveu à chuva de bombardeios que Mossul sofreu durante a guerra contra os militantes islâmicos. A batalha acabou em julho do ano passado, com a derrota dos extremistas.
— Agora, com uma estabilização maior do Iraque, achei que era o momento certo de programar essa viagem — disse ao GLOBO. — Como diversos outros judeus iraquianos, tenho saudades do lugar onde cresci.
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Shuker precisou deixar o Iraque, junto com sua família, em 1971. Muitos judeus que viviam na região seguiram o mesmo caminho — a maioria foi vítima de perseguições, que começaram a se tornar mais intensas com a criação de Israel, em 1948, e a recusa dos países árabes em aceitar o Estado judaico.
CONVITE DE MORADORES
Agora, muitos querem voltar — ou ao menos visitar a terra de seus antepassados. Com o fim da luta contra o Estado Islâmico e os esforços de reconstrução no Iraque, alguns judeus já estão tomando coragem para colocar os pés em sinagogas e antigos bairros judaicos. Foi o que fez Shuker, um dos primeiros judeus a embarcar recentemente para o país.
Ele resolveu aceitar um convite, feito por moradores de Mossul com quem já tinha contato, para conhecer a sinagoga. Não que tenha sido uma missão fácil. O templo fica na Cidade Antiga, região cheia de ruelas e becos que foi bastante atingida pela batalha contra o Estado Islâmico — o conflito se estendeu por nove meses e deixou um saldo de milhares de mortos, além de ter destruído metade da cidade.
Shuker e seus companheiros precisaram andar por cima de escombros, com cuidado, até chegar à sinagoga. Existia também o risco de encontrar explosivos pelo caminho: o Estado Islâmico deixou muitas minas terrestres, que podem explodir ao menor descuido.
— Valeu a pena. A sinagoga está bem preservada, embora precise de reparos — contou Shuker.
Há alguns meses, um grupo de voluntários de Mossul, todos muçulmanos, decidiu limpar o templo e retirar o entulho. A operação consumiu várias semanas. Os bombardeios, lançados pelas forças da coalizão liderada pelos Estados Unidos, destruíram boa parte das construções da região onde se localiza a sinagoga, no antigo coração da cidade. Parte das ruas se transformou em montanhas de entulho.
— Os judeus, assim como os cristãos, fazem muita falta. Sem eles, não há diversidade, o que é fundamental para a construção da coexistência —afirmou ao GLOBO o geólogo Faisal Jebber, líder dos voluntários. — Precisávamos cuidar do patrimônio judaico e deixar claro que os judeus são bem-vindos.
O grupo pretende realizar uma cerimônia na sinagoga e convencer as autoridades locais a restaurá-la. Shuker a definiu como “um templo magnífico, de arquitetura e história preciosas”.
Shuker, que nasceu e cresceu em Bagdá, ficou 45 anos sem pisar no Iraque. Há dois anos, ele comprou uma casa em um condomínio em Irbil, uma cidade próxima, no Curdistão Iraquiano, para ter um pedaço de terra no país no qual nasceu:
— Boa parte de minha história está neste país.
A maioria dos judeus iraquianos emigrou para o Reino Unido e Israel nas décadas de 1950 e 1960. Hoje, muitos ainda se ressentem da perseguição que os obrigou a fazer as malas e partir, mas outros, como Shuker, começam a ter esperança de fazer o caminho inverso, mesmo que seja só por curtos períodos de tempo.
HISTÓRIA EM LIVROS
A escritora britânica Marina Benjamin, filha de judeus iraquianos que decidiram morar em Londres, fez uma viagem de reconhecimento ao Iraque há alguns anos. A expedição deu origem ao livro “Last days in Babylon: the story of Jews of Baghdad” (Últimos dias na Babilônia: a história dos judeus de Bagdá, em tradução livre).
No ano passado, outra publicação da mesma natureza fez sucesso — e não na Europa ou Estados Unidos, mas no Iraque. Tsionit Fattal Kuperwasser, cujos pais emigraram para Israel, lançou o romance “The pictures on the wall” (As fotos na parede), sobre a história da comunidade judaica no Iraque. Escrito em hebraico, o livro ganhou uma tradução para o árabe recentemente e se tornou a primeira obra israelense a ocupar as prateleiras das livrarias no Iraque em muito tempo.
—A situação para pessoas de outras religiões, como a judaica, ainda não é totalmente segura, mas aos poucos os laços entre os judeus e o Iraque começam a se refazer — disse Shuker.
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A religião judaica nasceu na Mesopotâmia, o atual Iraque, há mais de 2.500 anos, na cidade de Ur, onde, de acordo com a Bíblia, vivia o patriarca Abrão. O local existe até hoje e pode ser visitado. Em busca de um território próprio, os judeus dirigiram-se a Israel, na época pouco habitado. Guerras e conflitos com tribos e impérios rivais, ao longo do tempo, acabaram provocando a escravização de centenas de judeus — muitos foram levados para a região do atual Iraque, então ocupado por impérios poderosos.
Não faltam exemplos de judeus que ascenderam na hierarquia imperial e deram importantes contribuições para a arte, a filosofia, a educação e a ciência. Babilônia, no centro do Iraque, tornou-se um importante ponto de confluência da religião judaica.
Há cem anos, cerca de um terço da população de Bagdá, ou 70 mil pessoas, era de origem judaica. Hoje, contam-se nos dedos os judeus que ainda moram no país.
— De qualquer forma, trata-se de uma história muito rica, que estamos fazendo um esforço para recuperar, o que inclui contatos mais próximos — afirmou Shuker.