Exclusivo para Assinantes
Mundo

Êxodo venezuelano: nas famílias mais pobres, pais emigram e deixam crianças com avós

ONG Fé e Alegria contabiliza centenas de casos como o do menino Aaron, que chora todas as noites de saudades da mãe
Maria Castaño e a neta, Eliana Almazo, que teve a mãe assassinada e viu o pai emigrar para a Colômbia Foto: Janaína Figueiredo/Agência O Globo
Maria Castaño e a neta, Eliana Almazo, que teve a mãe assassinada e viu o pai emigrar para a Colômbia Foto: Janaína Figueiredo/Agência O Globo

CARACAS — Muitas noites, Onelci Regia, de 61 anos, ouve seu neto, Aaron Socorro, de 9, chorando. O menino chora baixinho, para não incomodar a avó que, desde setembro de 2017, ficou encarregada da cuidar dele. Sua filha, Nelsi Rangel, de 29 anos, emigrou para a Argentina com o marido e o filho menor, Thiago, de 3 anos. A família decidiu deixar Aaron na Venezuela até conseguir se estabilizar no novo país. Embora não haja estatística oficiais, ONGs relatam centenas de casos de crianças deixadas sob a guarda de avós, outros parentes e, em alguns casos, amigos e vizinhos. O êxodo de venezuelanos é dramático para quem vai e para quem fica.

LEIA MAIS:

EUA mantêm sanções à Venezuela mesmo após libertação de americano

Maduro anuncia prisão de militares acusados de conspiração

Êxodo venezuelano: colapso social compromete uma geração de jovens

Onelci mora com o neto na favela de Petare. Ela diz que espera a renovação do seu passaporte e o fim do ano escolar, em julho, para planejar a viagem de ambos para a Argentina. Não será fácil. O governo de Nicolás Maduro não está renovando passaportes e o trâmite com um despachante pode custar até US$ 400, uma fortuna para as classe média e baixa venezuelanas.

— Aaron chora, está triste, sente muita falta da mãe e do irmão menor. Mas aqui minha filha e seu marido trabalhavam e o dinheiro não dava para nada — contou Onelci, que está aposentada.

O caso de Aaron não é exceção. Segundo Luisa Pernalete, Coordenadora do Programa de Mães Promotoras da Paz na ONG Fé e Alegria, escolas de todo o país têm alunos que, nos últimos dois anos, passaram a viver sem seus pais. Ela visita escolas e atualiza um registro de crianças que ficaram sem os pais, no que é considerado um fenômeno social explosivo. No estado de Bolívar, em nove escolas há 391 crianças cujos pais emigraram.Em Maracaibo, estado de Zulia, uma escola tem 108 crianças nessa situação. Estima-se que nos últimos dois anos, cerca de 1,8 milhão de venezuelanos deixaram o país.

— É um drama cada vez mais comum. Em muitos casos, as avós são idosas e não têm condições de ocupar o lugar dos país — disse Pernalete.

Venezuelanos no exterior
Onde estão
(em mil)
(em milhão)*
América
do Sul
América
do Norte
América
Central
1,6
885
308
78
21
0,7
Caribe
2015
2017
Fonte: Organização Internacional para Migrações, com imigrantes registrados; consultorias venezuelanas estimam que 1,8 milhão de pessoas saíram do país nos últimos dois anos
Venezuelanos no exterior
(em milhão)*
0,7
2015
1,6
2017
Onde estão
(em mil)
América
885
do Sul
América
308
do Norte
América
78
Central
21
Caribe
Fonte: Organização Internacional para Migrações, com imigrantes registrados; consultorias venezuelanas estimam que 1,8 milhão de pessoas saíram do país nos últimos dois anos

PLANOS DE REUNIR FAMÍLIA

As crianças são as vítimas mais indefesas da crise no país, que tem queda de 15% do PIB prevista para este ano e inflação de 14.000%. Estima-se que nos últimos dois anos, cerca de 1,8 milhão de venezuelanos abandonaram o país.  São crianças como Eliana Almazo, de 9 anos, vítima da insegurança e do colapso econômico. Sua mãe foi assassinada em 31 de dezembro e o pai emigrou para a Colômbia, onde trabalha em um supermercado. Ela mora com a avó, Maria Castaño, de 43 anos, também em Petare.

Na casa vivem apenas mulheres: Eliana, Maria e duas filhas, de 10 e 8 anos. O marido de Maria também mudou-se para a Colômbia e ela espera a oportunidade de também emigrar para voltar a reunir a família.

— Meu marido foi para Cartagena há seis meses e nos manda dinheiro. Eu trabalho como costureira e não ganho nem para comprar comida. Nosso projeto é ir embora este ano — assegurou Maria, que se disse angustiada pelas perdas que Eliana teve que enfrentar. Suas professoras chamaram a avó recentemente para conversar e explicar que Eliana não presta atenção nas aulas e suas notas têm piorado.

— Ela está triste, no dia das mães chorou o dia inteiro — contou Maria. Na sala da casa, uma foto de Claudia, mãe de Eliana, foi colocada para que a menina “não se esqueça nunca” da mãe. Claudia teve Eliana com 14 anos, mas segundo Maria “sempre foi uma mãe muito presente”.

Onelci Regia, que ficou com o neto Aaron, de 9 anos, enquanto filha tenta refazer a vida na Argentina Foto: Janaína Figueiredo/Agência O Globo
Onelci Regia, que ficou com o neto Aaron, de 9 anos, enquanto filha tenta refazer a vida na Argentina Foto: Janaína Figueiredo/Agência O Globo

VIAGENS ARRISCADAS

Muitos pais deixam as crianças na Venezuela porque a viagem, no caso dos mais pobres, é feita por terra, em condições precárias. Luisa ouve histórias como a de um menino que estava a caminho da Colômbia com a mãe e morreu após ser mordido por um escorpião.

— A maioria dos pais que emigra por terra prefere não levar as crianças porque é arriscado. Eles querem primeiro ter uma vida minimamente organizada para depois vir buscar os filhos ou pedir a alguém que os leve até eles — explicou Luisa Pernalete, da ONG Fé e Alegria.

As escolas que a ONG ajuda estão em condições complicadas. Além de alunos sem pais, professores pedem demissão porque não podem sobreviver com salários miseráveis e pais tiram as crianças das escolas por falta até mesmo de detergente para lavar os uniformes.

Em algumas escolas os próprios pais estão dando aula, para cobrir a falta de professores  Em algumas escolas os próprios pais estão dando aula, para cobrir a falta de professores — disse Luisa. Para ela, a Venezuela é hoje um país em guerra, com famílias destruídas, separadas e uma crise humanitária inédita em sua História.