São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2000

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+ antropologia
Em uma cidade no sertão do norte de Minas encontram-se dois fortes elos significativos da formação social do brasileiro, a herança bandeirante e a tradição nordestina
A oeste de Tordesilhas

Luiz Tarlei de Aragão
especial para a Folha

Vimos ultimamente com certa frequência -antes tarde que jamais- trabalhos propondo visões do Brasil à luz de novos ângulos (novíssimos, alguns) ou realimentando velhas teses sobre nosso ser social. Raramente, trabalhos antropológicos nesse patamar de globalizações. Após a década de 30 perdemos, em parte pelo menos, o gosto por incursões temerárias às totalizações sociais. Um dos desafios (e não o menor) é aquele de se entender a precedência de valores sociais e morais, e padrões culturais, uns sobre os outros.
O texto a seguir é produto de longo trabalho de campo, a partir de cidades no norte de Minas, alto sertão do São Francisco, onde a saga bandeirante, sulina e andarilha, opera um primeiro cruzar de lanças com contingentes nordestinos de penetração no sertão, sob a égide soteropolitana da Casa da Torre, de Garcia D'Ávila.
Dentre os escassos e mal conhecidos pares de "regiões culturais" nitidamente antinômicas, a base da formação social brasileira, aquele da costa do Nordeste, dos engenhos de açúcar, gregária, e Piratininga bandeirante, andante e ousada, ocupa posição certamente proeminente. Existe, além da realidade etnográfica e histórica, a mediar o pensamento social brasileiro, uma quase unanimidade quanto à sua "centralidade ontogênica", passavelmente "naturalizada" ao fio de século e meio desde Varnhagem, discípulos e positivistas maiores, de tessitura densa e arcabouço teórico vasto.
Convincente? Ou, em outros termos, até onde conclusivo e saciante? Onde, o "nó" de Piancó (de Capistrano), como aquele de nossa civilização (1)? Em todo caso, sempre achei que o "nó de Capistrano", por assim dizer, era mais embaixo. E não lá no alto, "cotovelo" do São Francisco (como dizia ele), onde o rio, bruscamente nostálgico do mar, vira para Paulo Afonso e, demandando em marcha batida e bruscos desníveis (hoje apagados pela represa), o Leste escravocrata, o farfalhar dos coqueirais, cajueiros (anões e gigantes), umbus, cajás, araçás, pitangas da costa, miçangas africanas. Já saveiros, já mulatos e mazombos, reinóis transplantados para os trópicos, carentes de nomes de uma nobiliarquia que, nitidamente, sofreu com a travessia.
Como antigo velejador sei o quanto o balanço do mar e as vagas do oceano adulteram finos conteúdos, que pode ter acontecido com nossa elite, diga-se de passagem. Esconde-se, portanto, ao nosso ver, bem a montante e muito precocemente elaborada desde finais do século 17, a falha tectônica com a presença dessas duas faces de nossa formação social: bandeirante e nordestina. Nômade e andarilha, uma; gregária, a outra. Escravocrata e exploradora da força humana, esta; predadora e agenciadora de braço escravo, aquela. Transpondo-se para o plano do pensamento social, de um lado Gilberto Freyre e suas explicações de riquíssimo barroco social. De outro, o despojamento de Caio Prado Jr., que nos fazia entender o todo, em absoluta economia das partes, como se isso fora possível em sociologia. Raymundo Faoro, no final da década de 50, aporta sua tese, de forma atraente. Uma novidade. Mas Faoro não foi farol na minha geração. Estávamos já nos santos anos "uspianos" da década de 60 e, nessa época, não se perdia tempo com heresias. Há 20 anos, retornamos ao Brasil, desta vez longe da rua Maria Antônia, ícone de três gerações, trepidante caldeirão de idéias e hoje impávido museu de nossas esperanças. Se Brasília não tem mar, o sertão está ali ao lado, por assim dizer. Mergulhei nesse epicentro do extraordinário movimento ciclópico da tomada de posse sem retorno, miscigênica, espantosamente bem-sucedida, desse imenso território. Surpreendente realidade sob qualquer escopo antropológico ou histórico, pasmando para o resto de sua vida Euclydes da Cunha, no ponto em que a tocou. Assinale-se desde já, uma das pontas de longo, intrincado, novelo. Além do gênio de Guimarães Rosa, que nos é imprescindível -o ser do sertão é guardião de dizeres e esconde parte do enigma ético e social brasileiro. O regime militar fez-me tremendo mal: matou alguns de meus melhores amigos e amigas. E grande favor: após escorraçar-me mundo afora, "recolocou-me" no centro do mundo, no olho do redemoinho histórico de meu país. O sertão vai e volta, diria Rosa, como, no meu privilégio, se deu. O que nos importa, na presente reflexão, é saber onde termina o sertão bandeirante de Fernão Dias, o maior de todos, e começa aquele, nordestino, soteropolitano, da Casa da Torre, de Garcia D'Ávila.

Descampados de areião
Em "entradas", a partir de abrigo urucuiano, percorri o extenso sertão (ainda) na margem esquerda do São Francisco. Certa feita, adentrei por descampados de areião se alternando com o latossolo, vermelho, entrecortado por epônimas veredas de buritis de um verde denso, brilhoso e incomum, abrigando em descambados, catrumanos indecifráveis. Em Montes Claros, lembro-me de meu espanto plasmado de alegria ao ver à minha frente, como em cenário ensaiado de coreografia rústica, os dois "lados" do "esbarrão" cultural principal de nossa história primeva. De um lado, açougues com carne de bode, chapéus de couro, farinha de mandioca, requeijão "do sertão". Do outro, carne de gado, suína, chapéus de palha, farinha de milho (o bandeirante preferia o milho à mandioca, dados a rapidez de sua germinação e a comodidade de transporte de suas sementes), queijos curados e frescos, "de Minas". De um lado, umbus; de outro, pequis. Desta parte, cachaça com raízes medicinais e similares; na outra, a mesma com frutas silvestres, cajus curtidos, dentro. Em ambas, a presença da cana-de-açúcar (melado, rapadura, açúcar mascavo e aguardente dentre as melhores do país). Manifestamente, "mineiros" desse espigão, despojaram-se já de aspectos decantados da misteriosa "mineiridade". Os humores, mais francos, o falar "arrastado" e os dizeres, julgamentos e juízos, francamente ousados em relação ao "padrão" mineiro. Os gestos mais incontidos e o desafio agnóstico, a coragem manifesta para o enfrentamento tomam a precedência em valor sobre a contenção, a dissimulação e o não-engajamento. Índios e mamelucos não resultavam em grandes operários nas minas, sempre se soube disso. São aptos às andanças, travessias-descobertas, guerrilhas, guerras sertanejas, pastoreio. À democracia.

Universal sertaneja
Domina na região a universal sertaneja de democratização dos fundamentos sociais: intercasamento entre os estoques populacionais em presença, comensalidade franca e convivialidade generalizada. A instituição do compadrio é aí crucial para a expansão do parentesco e das alianças, conjugando respeito e ajuda mútuos, parceria, solidariedade, fiabilidade no trato, previsibilidade nos comportamentos.
Em Minas, portanto, no sertão do extenso norte mineiro, encontram-se os dois elos fortes e significativos de nossa formação social. Ambos já edulcorados de seus contornos originais, mas perfeitamente identificáveis para a ciência social. É como se o modelo bandeirante, após a penosa derrota para os emboabas no começo do século 18, na região das minas, cujo ouro haviam descoberto, houvesse se acomodado no extremo norte mineiro, de seus antigos desígnios e feitos extraordinários, construindo localmente, em muitos aspectos, um híbrido modelo hegemônico, com o nordestino. Este igualmente aparentando haver esgotado aí, a um terço das cabeceiras do São Francisco, seus ânimos de conquista.
Montes Claros de Minas é museu a céu aberto da história social do Brasil, agasalhando em seu espaço, as duas faces antinômicas e hegemônicas de nossa formação social, relíquia do Brasil colônia e dos "caminhos de povoamento". Entretanto, afastando-se do "complexo emboaba" mineiro, ao sul e sudeste, os bandeirantes desenvolvem e consolidam sua lógica original "sui generis", na expansão territorial a oeste de Tordesilhas.

Nota:
1. Piancó é hoje nome de uma diminuta cidade do alto sertão da Paraíba.


Luiz Tarlei de Aragão é antropólogo, professor da Universidade de Brasília e ex-professor da Universidade de Paris. Está no momento trabalhando no ensaio "A Oeste de Tordesilhas - O Sertão e a Formação Nacional".


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