Coluna
Daniel Galera O colunista escreve às segundas

O tempo das influências

Só comecei a escrever meu último romance depois de quase dois anos de anotações, pesquisas e um convívio com seu cenário

“A influência criativa pode ter carga positiva ou negativa, ser um impulso de imitação (‘Quero tentar fazer isso!’) ou de desafio (‘Quero fazer isso de outro jeito’). Os dois tipos de influência são cruciais para o vigor de uma ideia”. Assim a escritora Eleanor Catton abre um artigo publicado dias atrás no site do jornal britânico “The Guardian” sobre o processo de escrita de seu romance “The luminaries”, vencedor do prestigioso Booker Prize em 2013. A carga positiva, nesse caso, veio primeiro: Catton queria recriar o encanto que havia experimentado ao ler as obras infanto-juvenis de aventura e mistério que a motivaram a escrever seus próprios livros, como “A ilha do tesouro”, de Robert Louis Stevenson.

A partir dessa vontade, ela foi estreitando o foco. Decidiu que gostaria de escrever uma história situada na Nova Zelândia, e um tema foi levando a outro: a corrida do ouro do século XIX, a riqueza, as trapaças, os videntes e as previsões do futuro, o zodíaco. Esse processo de procura do romance durou dois anos e envolveu uma quantidade imensa de leituras e anotações. Apenas no final desse período, quando sua pesquisa a conduziu à leitura de “O castelo dos destinos cruzados”, de Ítalo Calvino, ela conseguiu encontrar a carga negativa que completaria sua ideia. Catton admirou a estrutura de quebra-cabeças do livro de Calvino, mas só terminou a leitura com muito esforço. Teve vontade de escrever uma história em que a complexidade estrutural não sacrificasse o prazer do enredo. “Pensei sobre o romance que eu gostaria que ‘O castelo dos destinos cruzado’ tivesse sido — e ali, enfim, estava minha influência com carga negativa”.

Não li o elogiado romance de Catton, mas seu conceito das influências positivas e negativas que se complementam e a descrição de seu processo de pesquisa me causaram um sentimento de identificação. Só comecei a escrever meu último romance, “Barba ensopada de sangue”, depois de quase dois anos de anotações, pesquisas ocasionais e um convívio demorado com a história e seu cenário. Ao contrário do que alguns leitores pensam (digo isso baseado em perguntas que me fizeram em entrevistas e em conversas com leitores), não vivi um tempo na cidade de Garopaba, em Santa Catarina, com o propósito de pesquisar o romance. Pelo contrário. Os contornos da história começaram a se desenhar na minha imaginação porque eu estava vivendo lá. A essa experiência direta se somaram a memória, a invenção pura e um acúmulo de leituras incentivadas mais pelos meus anseios como leitor do que pelo projeto do livro.

Várias foram as influências de carga positiva, muitas delas detectadas pelos leitores após a publicação do livro. A mais forte foi Cormac McCarthy, escritor que já vinha fazendo minha cabeça há alguns anos e cujas obras completas terminei de ler durante a temporada em Garopaba. Outro autor importante foi o argentino Juan José Saer, em especial um romance chamado “As nuvens”, que contém algumas das mais belas e intensas descrições de natureza e estados introspectivos que já encontrei na literatura. Eram livros que me despertavam, como diz Catton, o impulso de “Quero tentar fazer isso!”, impulsos que solicitam iguais doses de humildade e ousadia para serem aproveitados. Quanto às influências de carga negativa, essas são mais difíceis de isolar. Uma delas foi o desejo de escrever um romance que fugisse à tendência mais enxuta de boa parte da literatura contemporânea que eu vinha lendo. Queria a liberdade de ser prolixo, de ser indulgente com os arroubos descritivos, de deixar o texto transbordar como faziam autores que, no mais, pouco ou nada têm a ver com meu próprio estilo: o Fausto Wolff de “À mão esquerda”, o Lúcio Cardoso de “Crônica da casa assassinada”, os calhamaços do Roberto Bolaño e do Javier Marias.

De julho de 2008 até o final de 2009, enchi dois cadernos com anotações. Prometi a mim mesmo queimá-los, mas estão aqui até hoje. São toneladas de frases, pensamentos, lascas de diálogos, facetas de personagens, descrições de pessoas, lugares e episódios testemunhados, lembretes para incluir tal e tal coisa. A grande maioria dessas coisas jamais foi incluída no rascunho do livro, que comecei a escrever já em Porto Alegre, depois de me despedir de Garopaba. Sem elas, porém, o romance não teria existido.

Catton encontrou seu livro usando um programa da web que rastreava o movimento dos planetas nas constelações do zodíaco. Eu encontrei o meu observando as ondas, lembrando das histórias de um assassinato e de um cachorro manco que nadava. E é com o mesmo misto de hesitação e ousadia que se entra nesse terreno de novo, empurrado por inspirações negativas e positivas, vislumbrando alguns contornos e desconhecendo todo o resto, para, se tudo correr bem, começar algo novo.

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