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Na Flip 'cariocada', Folha Seca leva o encontro entre samba e literatura para Paraty

Livraria da Rua do Ouvidor, capitaneada por Rodrigo Ferrari, promoveu roda de samba
Encontro entre samba e literatura na Flip, em Paraty Foto: Clarice Motta / O Globo
Encontro entre samba e literatura na Flip, em Paraty Foto: Clarice Motta / O Globo

PARATY — “Vamos recordar Lima Barreto / Mulato, pobre, jornalista e escritor / figura destacada do romance social / que hoje laureamos nesse carnaval ".

Assim começa o samba-enredo da Unidos da Tijuca “Lima Barreto, mulato, pobre, mas livre” que foi entoado pelas ruas do Rio de Janeiro em 1982. Três décadas depois, o mesmo samba podia ser escutado em Paraty, onde o autor carioca foi novamente homenageado, dessa vez na Flip.

E não foi só por aí que o samba e a literatura se encontraram na festa literária. No final da noite de sábado, dezenas de pessoas se reuniram madrugada adentro no entorno da Igreja da Matriz. O motivo? Uma roda de samba organizada pela livraria Folha Seca.

Há 20 anos, o livreiro Rodrigo Ferrari, conhecido de todos como Digão, resolveu juntar futebol, samba e o que chama de “temas cariocas” ao redor de uma livraria especializada  nesses assuntos, no centro do Rio. Daí surgiu a Livraria e Edições Folha Seca, que nasceu próxima à Praça Tiradentes, se consolidou na Rua do Ouvidor e sempre manteve uma aposta certeira para, nas palavras de Ferrari, “unir os livros e a rua” – a roda de samba.

Desde então a livraria tem reunido literatura e o gênero musical carioca em um encontro estimado pelos apreciadores dos dois mundos. Para este ano, incentivado pela participação dos amigos escritores (além de frequentadores da roda) Luiz Antonio Simas e Alberto Mussa, Digão resolveu pela primeira vez vir à Flip e trazer a livraria. Com isso, a ideia de organizar uma roda de samba veio naturalmente.

— Onde tem a Folha Seca, tem samba. Viemos em um esquema bastante mambembe e a intenção não foi importar nossa roda da Rua do Ouvidor para cá, mas dar prioridade a músicos locais e ver o que acontece.

O resultado não podia ser mais a cara do Samba do Peixe, nome da roda de samba mensal na Rua do Ouvidor. Autorizado pelo fim da última mesa de sábado, o som que começou tímido acabou reunindo dezenas de pessoas em uma rua lateral da Igreja da Matriz. Com composições de Roque Ferreira, Cartola, João Bosco, dentre outros, clássicos foram entoados até a madrugada. Para Digão, organizar esse tipo de evento, na Flip, é uma forma de tornar menos engessada a programação, oferecendo outro tipo de entretenimento às pessoas ao mesmo tempo em que difunde os temas cariocas que dedica na livraria.

— Não há como não reconhecer a importância da Flip, mas devo admitir que sou um tanto alérgico a palestras. O lugar da literatura brasileira é a rua, a crônica, a cultura popular das pessoas, do futebol, da música e são esses os valores que cultivamos no Rio e encontramos ao fazer uma roda de samba.

SAMBA DO 33

“Vamos sublimar em poesia / a razão do dia a dia / para ganhar o pão”

Assim começa o samba "33, Destino Dom Pedro II", cantado por Jovelina Pérola Negra. Narrando o cotidiano dos passageiros das linhas de trem do Rio de Janeiro, a canção foi escolhida pelo autor Luiz Antônio Simas, que acaba de lançar seu novo livro “Ode a Mauro Shampoo e outras histórias da Várzea” e participou da Flip, para homenagear Lima Barreto, que conheceu profundamente essa rotina das estradas de ferro cariocas.

Para Simas, a Flip deste ano, por celebrar Lima Barreto, dialoga com duas fortes tradições do Rio de Janeiro: a crônica e a rua. Umas das características mais marcantes do autor de “Feiras e Mafuás” seria a vivência, ao rés-do-chão, do cotidiano da cidade. A vida no subúrbio, o uso do trem como meio transporte, a conversa nos cafés do Centro, impregnaram a escrita de Lima, e saíram do papel para dar ares da Guanabara à cidade de Paraty neste ano.

— Esta é a Flip mais “cariocada” de todas. — disse Simas durante a roda de samba — Isso se deve muito ao fato do Barreto ser um grande cronista, um observador dos personagens urbanos, das miudezas e dos tipos do Rio que é uma cidade onde existe esse ritual da rua, do espaço público como encruzilhada de sociabilidades.

Ainda segundo o cronista, a literatura e o samba guardam uma ligação “visceral” entre si. E a Livraria Folha Seca seria justamente um elemento da cidade propiciador para a concretização desse elo entre essas expressões

— O samba é texto. O samba é crônica. Se você escuta "Conversa de botequim" do Noel Rosa, por exemplo, você percebe nitidamente elementos narrativos que se aproximam da literatura.

Alberto Mussa, escritor carioca que lançou seu novo romance, " A Hipótese Humana" (Record), já frequenta o samba da Folha Seca há anos. E vê nela uma representante da cultura de rua do Rio de Janeiro. O papel da livraria de rua, para ele, é essencial nessa medida em que cria vínculos entre leitores, autores e livreiros.

— A Folha Seca tem um papel especial. Ela está num lugar privilegiado e emblemático, que é a Rua do Ouvidor e, com o trabalho de curadoria, a livraria acaba se tornando um centro gravitacional, atraindo leitores — disse o autor, enquanto acompanhava a roda de samba.

A relação criada entre autores e leitores, inclusive, rendeu uma mudança de capa no livro mais recente de Mussa.

— Na Folha Seca, acabei fazendo amizade com uma leitora de Salvador, a Olivia Soares, que um dia me presenteou com o livro “Sete portas da Bahia”. Nele, acabei me deparando com uma ilustração pela qual me apaixonei. Acabou que, uma semana antes do livro ir para a gráfica, entrei em contato com a minha editora para mudar a capa e botar justamente essa imagem — contou o autor.

AUTOR DO TREM

Para homenagear Lima Barreto, Mussa concorda com a escolha de Simas:

— Apesar do samba não ser assunto na obra de Lima, o samba "33" representa muito. Lima Barreto era passageiro do trem, e ele escreveu sobre isso, sobre a rua. Mas diferentemente de muitos autores, o fez de uma maneira íntima. Não como um observador externo — ponderou.

Para ele, um dos pontos importantes da homenagem à Lima Barreto é tratar dessa literatura humanizada feita sobre a rua e com a vivência da rua, de participante ativo dos processos.

— Muitas vezes se fala das ruas de um ponto de vista afastado. Lima Barreto, pelo contrário, falava com proximidade da rua e do seu tempo. Ele escrevia não para a posteridade, mas sim para o momento em que viveu e isso fez dele eterno — comentou o autor.

Para ele, a nova posição cultural do Rio de Janeiro, que “perdeu o posto de capital cultural do país para São Paulo”, se engrandece na literatura mais particular, intrinsecamente carioca.

— Tolstoi disse uma vez que quando mais particulares sobre sua aldeia, mais universais eram seus livros. É o caso de Lima, que ao criar o primeiro malandro especificamente carioca, no “O Homem Que Sabia Javanês”, também fez um personagem de significância universal — argumentou o autor.

— A homenagem da FLIP para o Lima é especial, mas a maior de todas ele já ganhou há décadas, quando a Unidos da Tijuca desfilou com um samba enredo sobre ele — comentou Simas, em referência ao samba-enredo ‘Mulato, Pobre, Mas Livre’, de 1982.

A significância da homenagem na Avenida também é enorme para Mussa. Para o autor, o samba-enredo ocupa um espaço de poesia épica e narrativa, fazendo uma mitologia da cidade.

— Samba é literatura. E o samba-enredo tem esse ineditismo, de retomar essa função da poesia épica, quase abandonada em troca da lírica, de celebração e exaltação da história e dos heróis do povo — explica.

* Estagiários, sob supervisão de Leonardo Cazes