• Depoimento a Roberta Malta
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Eu, leitora: “Queria passear pelo mundo e acabei parte dos Médicos sem Fronteiras” (Foto: Colagem: Fernanda Segabinassi)

(Colagem: Fernanda Segabinassi)

“Nasci em São Paulo, em uma família de classe média. Durante a infância, convivia muito com Nila*, uma vizinha da minha idade, imigrada da Índia com a família. Em sua casa, era normal alguém começar uma frase em inglês e terminar em português. Seus hábitos eram totalmente diferentes dos nossos. A comida, as roupas, tudo. Eu adorava quando era convidada para almoçar e experimentava aqueles pratos cheios de aromas que não conhecia. Desde essa época, tenho fascínio pelo Oriente Médio. Quando pensava em viajar, não tinha vontade de conhecer a Disney. Queria explorar lugares exóticos.

Minha estreia em viagens internacionais foi aos 28 anos. Fazia quatro que tinha me formado em psicologia. Atendia em um consultório dividido com outros colegas, em São Paulo, e na rede pública pelo SUS [Sistema Único de Saúde]. Minha vontade inicial era conhecer o Irã. Gostava do idioma deles, do cinema, da história. Mas, como ia sozinha e o país era muito fechado, achei mais prudente visitar um lugar mais turístico. Escolhi a Turquia, onde sabia que conseguiria me virar em inglês. Comprei passagens para Istambul e outras cidades, reservei hotéis e lá fui eu desbravar o Oriente.

De cara, me encantei com a cultura e a receptividade, embora sentisse por não falar o idioma local – o que não me deixava conhecer a fundo o povo e me restringia aos estereótipos reservados aos turistas. Mesmo assim, aproveitei esse mês ao máximo. Desde a riqueza da música até a arte nas louças. É tudo colorido, detalhado, cuidadoso. Em todo lugar que visitava era convidada para tomar um chá, o ritual mais emblemático do país. A impressão que tive (e confirmei depois) é a de que os turcos têm sempre um tempo para saber quem você é. Bem diferente de São Paulo, onde olha-se muito para o trabalho, o dinheiro e pouco para as pessoas. Tanto que retornei ao Brasil com uma ideia fixa: queria morar lá. Não sabia como nem quando isso aconteceria, mas, internamente, tinha certeza de que daria certo. Absoluta.

Passei um ano pesquisando tudo sobre a Turquia. Até que descobri um programa de intercâmbio voluntário para dar aulas de inglês a crianças deficientes. Me candidatei e consegui a vaga. Dessa vez, passaria seis meses lá. Os três primeiros em Bursa, no noroeste do país, morando com um casal na faixa de 40 anos, com quem me comunicava por sinais. Não recebia para isso, mas tinha tudo na casa de meus ‘pais’. Na segunda metade da viagem, em Istambul, arranjei emprego em um escritório de turismo para vender pacotes aos brasileiros – cenário da principal novela da época [Salve Jorge, de Glória Perez, 2012], a Turquia era o destino da vez.

Foi nesse período que comecei a frequentar a casa de Raghu*, que trabalhava comigo e falava português. Ele dividia o apartamento com três amigos da Síria, onde a guerra havia acabado de começar. Samir*, Kalil* e Omar* eram dentistas, tinham uma condição financeira razoável e deixaram o país legalmente no início do combate. Mas, como não falavam o idioma, não conseguiam emprego na Turquia. Ainda não tínhamos muitas informações sobre a guerra e só me dei conta da tragédia daquela situação quando Omar conseguiu uma vaga em uma fábrica de molhos com carga horária de 12 horas diárias e um salário pífio. Ele ficou tão eufórico que entendi se tratar de uma felicidade de desespero. Passei a me imaginar no lugar dele – com uma profissão, sem ter como voltar para casa e tendo de me submeter a essas condições. E nasceu em mim um desejo forte de ajudar os refugiados que viviam na fronteira da Turquia com a Síria.

Os seis meses voaram e, de novo, me despedi de Istambul pensando em voltar. A experiência com a cultura turca e a situação dos sírios ecoava dentro de mim. Pouco depois de chegar, soube que Zeki*, um amigo cineasta de Raghu, estava em São Paulo para fazer um intercâmbio. Nós já nos conhecíamos. Ele estava superinteressado por nossa cultura e tentava falar português comigo, enquanto eu fazia o mesmo com ele em turco. Pois o encontro virou namoro e passamos juntos a metade do ano em que ele ficou no Brasil. Mais um motivo de eu querer voltar ao país que havia roubado meu coração. Seu retorno à terra natal ajudou a acelerar minha busca. A essa altura, não tinha mais dinheiro guardado e estava morando na casa dos meus pais.

Eu, leitora: “Queria passear pelo mundo e acabei parte dos Médicos sem Fronteiras” (Foto: Colagem: Fernanda Segabinassi)

(Colagem: Fernanda Segabinassi)

Tanto fucei que achei um programa de bolsa de estudos do governo de lá para estrangeiros. Era um mestrado – no meu caso, em sociologia – de três anos. Superconfiante, prestei o concurso e passei. Minha próxima temporada seria com visto de estudante, um dinheiro que me possibilitaria viver sem trabalhar e ainda um namorado. Mas, seis meses depois, pela primeira vez, senti o peso das diferenças culturais. Os turcos são possessivos, Zeki mostrou-se ciumento ao extremo e a relação ficou insustentável. Meu trabalho o deixava inseguro, mais ainda o fato de lidar com tantos homens em condição de igualdade no meu dia a dia. Fiquei abalada, claro, mas a minha motivação de estar ali era minha ligação com a Turquia e nada me desviaria do meu foco.

Enquanto estudava, comecei a fazer contatos com ONGs turcas e me candidatei a um trabalho social voluntário. Logo me chamaram para ajudar os africanos instalados em Istambul. Eu os visitava, distribuía roupas e o que mais precisassem. Mesmo sem atuar na minha profissão, me sentia extremamente útil àquela gente com absoluta falta de tudo. Aos poucos, fui conhecendo pessoas, melhorando minha fluência no idioma e fazendo contatos com as instituições que acolhiam refugiados na fronteira com a Síria.

Não demorou para eu receber um convite da Suport to Life, ONG local subsidiada pelos Médicos sem Fronteiras. Me ofereceram passar três meses em experiência num projeto de línguas, proteção ao trabalho infantil e, a parte que me cabia, saúde mental. Estaria à frente de uma equipe de cinco pessoas (todos sírios e nenhum psicólogo) que prestaria atendimento em Sanliurfa, cidade a duas horas de avião de Istambul, fronteira com a Síria, onde se concentravam os refugiados da guerra. Meu papel era técnico: ensinava estratégias de atendimento e coordenava o projeto. Sem saber se daria certo, armei um esquema com os professores do mestrado para, caso a barra fosse muito pesada, retomar as aulas. Tolice. Assim que pisei no centro comunitário, entendi que aquilo era tudo o que queria para minha vida.

Quando começamos a atender, os 400 mil refugiados empilhados em casebres no subúrbio nos recebiam com desconfiança. Tudo era muito novo para eles. Àquela altura, só havia duas turmas formadas em psicologia na Síria. Eles não faziam ideia do que era terapia. Três meses depois, meu período de experiência acabou e eu tranquei o curso pra continuar o atendimento em Sanliurfa. Abri mão da bolsa de estudos, consegui o visto de trabalho e fiquei lá por um ano e meio ajudando aquelas pessoas a lidar com o fato de terem subempregos, apesar de serem formadas; morarem em construções precárias, sem laje nem aquecimento, mesmo que, pouco antes, usufruíssem de uma vida de classe média em seu país natal. Via pessoas sem ter onde morar nem o que vestir, famílias inteiras desfeitas no meio do caminho – filhos e pais perdidos, crianças sozinhas, velhos desistindo de viver. Lembro de uma família com sete crianças cujo pai havia morrido na guerra. A mãe ficava em casa com os cinco menores, enquanto os mais velhos, de 9 e 10 anos, trabalhavam 12 horas por dia numa padaria em troca de pão para os irmãos. Tentava não me apegar a casos específicos, mas a cada 15 dias fazia uma ronda para visitar os pacientes e me emocionava toda vez que chegava a um barraco minúsculo habitado por famílias inteiras – eram três, quatro, cinco em cada casa. Parada por parada, eu era recebida com um café preparado conforme a tradição síria. Às vezes, repetia o ritual mais de dez vezes, mas nunca neguei uma xícara. Era lindo ver aquelas pessoas preservando sua cultura e dividindo o pouco que lhes restava.

Depois de quatro anos em Istambul e dois na fronteira, senti que devia parar um pouco. Precisava elaborar o que havia acontecido. Estava fora havia muito tempo, fazendo um trabalho de uma intensidade absurda. Ainda na Turquia, mandei meu currículo para os Médicos sem Fronteiras do Brasil e, para minha surpresa, fui chamada para trabalhar com a instituição. Achava remota a possibilidade de fazer parte da equipe, parecia grande demais para mim. Pediram que eu ficasse mais quatro meses na fronteira e, em novembro passado, voltei para casa. Como eles trabalham por missão, tenho a possibilidade de dar tempo ao tempo quando sentir necessidade. Depois de seis meses parada em São Paulo, parto estes dias para Moçambique, na África, onde passarei um ano. Morro de saudades da Turquia e dos momentos com os sírios. A realidade deles era minha maior angústia e poder transformá-la mudou muito mais a mim do que a eles. É isso que pretendo levar a meus ‘pacientes’ nas próximas missões. É gente que, como todo mundo, merece ser feliz de novo. E, no que depender de mim, será.

* Os nomes dos personagens foram trocados a pedido da entrevistada