Renascimento da fauna e da flora da Lagoa Rodrigo de Freitas Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Com água mais limpa e sem mortandades, Lagoa vive renascimento de espécies ao seu redor

Animais como frango d'água, manjubinha e marreca toicinho estão entre novos 'moradores'

Renascimento da fauna e da flora da Lagoa Rodrigo de Freitas - Márcia Foletto / Agência O Globo

por Carina Bacelar

Entre o vai e vem de carros, o som de buzinas e à sombra de prédios altos, o Rio tem uma ilha de biodiversidade para a qual poucos cariocas prestam atenção na correria do dia a dia. Mais precisamente, uma lagoa. No coração da Zona Sul, a Lagoa Rodrigo de Freitas, que teve uma melhora na qualidade de suas águas nos últimos anos, vive um renascimento de seu ecossistema, com o ressurgimento de algumas espécies de animais que não eram vistas por ali. Mesmo antes da despoluição, garantem especialistas, o local sempre foi um rico habitat, que também vem sofrendo, por outro lado, com a presença de animais invasores, que podem desequilibrar a cadeia alimentar local.

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Muitos dos caminhos levam à Lagoa

Animais e vegetais que vivem no ecossistema podem ter sido introduzidos por moradores ou biólogos (como Moscatelli fez com o mangue, retratado na foto) - Márcia Foletto / O Globo

Para o biólogo Mário Moscatelli, que desde a década de 80 levanta a bandeira da recuperação da Lagoa, o símbolo desse renascimento da biodiversidade é o frango d’água. Trata-se de uma ave que parece uma galinha preta, com crista vermelha, que tem pouca capacidade de voo, mas pode flutuar como um pato. Vive em pântanos e lagos, em ambiente de Manguezal — que não existia na Lagoa antes de 1989, quando o próprio Moscatelli começou a plantar a vegetação de mangue nas margens do espelho d’água.

— Em 1989, eu nunca tinha visto um frango d’água. Essa ave apareceu não sei como em 1999 e hoje ela é o símbolo desse incremento de biodiversidade. A Lagoa virou um verdadeiro poleiro de frango d’água. A partir do momento que a gente consegue diversificar a cobertura vegetal com os manguezais e melhorar as condições da água, a Lagoa volta a assumir o papel de berçário que tem por natureza — diz Moscatelli.

O renascimento da Lagoa Rodrigo de Freitas

  • No coração da Zona Sul, a Lagoa Rodrigo de Freitas teve uma melhora na qualidade de suas águas nos últimos anos Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

  • Renascimento de seu ecossistema faz ressurgir espécies de animais que não eram vistas por ali Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

  • Por vezes, biodiversidade do local deixa de ser apreciada pelos cariocas devido à vida corrida Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

  • Mesmo antes da despoluição, garantem especialistas, o local sempre foi um rico habitat Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

  • Símbolo desse renascimento é o frango d’água, ave que parece uma galinha preta, com crista vermelha Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

  • Animais chegam à Lagoa se deslocando das áreas do Maciço da Tijuca Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

  • Mesmo cercada de vegetação, a Lagoa constituía um ecossistema instável, pois recebia detritos das regiões, mais altas, de seu entorno Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Além do frango d’água, começaram a ser vistos pela Lagoa, nos últimos anos, outras aves como o savacu, de pernas cumpridas e bico preto. A ave se alimenta de pequenos caranguejos de mangue. Já a marreca toicinho, conhecida por parecer um marreco com a base do bico vermelha e a cabeça metade branca e metade marrom, também tem sido vista pela Lagoa com mais frequência.

Moscatelli destaca que os animais chegam à Lagoa se deslocando das áreas do Maciço da Tijuca, pelas praias da região (no caso dos peixes, principalmente) ou com a “mãozinha de alguém”. O frango d’água, por exemplo, tem baixíssima capacidade de voo, e reza a “lenda” que chegou pelas mãos de morador da Lagoa, que levou um casal de bichos para local. Já o caranguejo guaiamum, que Moscatelli jura já ter visto cruzando as ciclovias, foi levado para o local pelo próprio biólogo no fim da década de 80, quando começou o plantio da vegetação de mangue. As capivaras, que viraram outro símbolo da fase mais recente (e menos suja) da Lagoa também estão se reproduzindo.

No grupo dos répteis, um novo morador é o lagarto teiú. Segundo o biólogo e fundador do Instituto Jacaré, Ricardo Freitas Filho, trata-se de um dos maiores lagartos da América Latina, que pode chegar a 1,5 metro. Mas não espere vê-lo pela Lagoa no próximo fim de semana: no período do inverno, ainda que de temperaturas cariocas, o bicho costuma hibernar. Por causa do seu porte, o lagarto, que é um predador, precisa de calor para metabolizar o que come. Na avaliação de Ricardo, o lagarto, que vive na Mata Atlântica, pode ter chegado à Lagoa atraído pelo plantio nas áreas de margem, e devido à proximidade com locais como o Parque da Catacumba, no mesmo bairro, o Jardim Botânico e o Corcovado:

Aves da Lagoa Rodrigo de Freitas
Casaca-de-couro-da-lama
Garça-branca-pequena
Furnarius figulus
Egretta Thula
João-de-barro
Garça-branca-grande
funarius rufus
Ardea alba
Urubu-de-cabeça-preta
Garça-moura
coragyps atratus
ardea cocoi
Socozinho
Savacu-de-coroa
butorides striata
nyctanassa violacea
Savacu
Biguá
nycticorax nycticorax
phalacrocorax brasilianus
Tesourão
Mergulhão-caçador
fragata magnificens
podilymbus podiceps
Marreca-roicinho
Mergulhão-pequeno
anas bahamensis
tachybaptus dominicus
Curutié
Certhiaxis cinnamomeus
Aves da Lagoa Rodrigo
de Freitas
Casaca-de-couro
da-lama
Furnarius figulus
Garça-branca-pequena
Egretta Thula
João-de-barro
funarius rufus
Garça-branca-grande
Ardea alba
Urubu-de-cabeça-preta
coragyps atratus
Garça-moura
ardea cocoi
Socozinho
butorides striata
Savacu-de-coroa
nyctanassa violacea
Savacu
nycticorax nycticorax
Biguá
phalacrocorax brasilianus
Tesourão
fragata magnificens
Mergulhão-caçador
podilymbus podiceps
Marreca-roicinho
anas bahamensis
Mergulhão-pequeno
tachybaptus dominicus
Curutié
Certhiaxis cinnamomeus
Fonte: Universidade Santa Ursula
Credito: Carol Goes


— Como o bairro vem ganhando uma oferta de arborização, tem uma passagem mais facilitada da fauna. Uma vez que o ambiente está revitalizado, tem recursos para oferecer. O teiú é um animal bem sensível à esse tipo de interação com o homem — aponta Ricardo, ressaltando que o Lagarto Verde (Ameiva Ameiva), que já era comum na Lagoa, também vem aparecendo mais.

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Nas águas, novos peixes e um invasor

Entre os peixes, manjubinha é novidade nas águas da Lagoa - Márcia Foletto / O Globo

Nas águas, a Lagoa também tem novos moradores. De acordo com o biólogo e pesquisador da Universidade Santa Úrsula Bruno Meurer, o robalo, que é uma espécie ameaçada de extinção, tem nadado por lá, trazido pelo fio d’água do canal que liga o ecossistema à praia do Leblon. Os pescadores da região, entretanto, vêm enfrentando problemas por causa de outro habitante “recente” da Lagoa: o mexilhão invasor.

Não há versão oficial sobre a chegada do mexilhão — uma das teses é que tenha vindo aderido à balsa da árvore de natal. Nos últimos anos, entretanto, o animal de multiplicou, inclusive por causa das boias e equipamentos que foram colocados ali para os Jogos Olímpicos e acabaram servindo de substrato. Como se alimenta de larvas de peixe, eles deixam a água da Lagoa mais clara, o que pode parecer bom, mas é uma ameaça ao ecossistema do local, porque acabam roubando alimento de outras espécies.

Para os pescadores, a água mais clara que o normal é sinônimo de prejuízo: os peixes acabam enxergando a rede e fogem. As manjubinhas, pequenos peixinhos que são vistos nas praias em cardumes, também têm sido vistas na Lagoa de uns tempos pra cá. Mais ou menos do porte de sardinhas, não têm valor comercial e sequer ficam presas nas redes porosas dos pescadores.

— A qualidade da água melhorou, tanto é que não estamos tendo mortandade, mas a pesca não é a mesma de antigamente. Teríamos que ter uma rede miúda para pegar a manjubinha, mas é proibido na Lagoa. Só se pode usar rede que pega peixes de meio quilo pra cima — afirma Orlando Marins Filho, de 60 anos, que está na terceira geração de pescadores da sua família. — A claridade da água tem atrapalhado. Você até consegue que o peixe entre quando a rede está branquinha, mas ela vai ficando suja e o peixe não entra mais.

Ao contrário dos animais que têm povoado a Lagoa, os pescadores têm sumido. São um grupo cada vez menor porque, segundo Orlando, os mais jovens não querem seguir o ofício. Os mais antigos “vão morrendo e não têm ninguém para entrar no lugar”. Se em 1980 havia 32 pescadores, mais ou menos, hoje são 22.

— Tende a acabar, como em várias partes do Brasil — lamenta Orlando, que parece conformado com a extinção para a qual se encaminha seu grupo.

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Para biólogos, equilíbrio do ecossistema é frágil

Garças e biguás: aves que, adaptadas a ambientes mais poluídos, sempre estiveram na Lagoa - Márcia Foletto / O Globo

Apesar de a situação das águas da Lagoa ser hoje bem melhor que nos anos 80, essa qualidade é instável e está ameaçada. Desde o fim do ano passado, o monitoramento das águas que era feito por uma empresa contratada pela prefeitura parou de ser realizado. O Município alega que o contrato com a empresa acabou, mas um novo edital de licitação ainda não foi lançado e está em processo de conclusão. Enquanto isso, o biólogo Bruno Meurer alerta que a água está sendo menos renovada que o esperado pelo canal que liga a Lagoa ao mar. E a baixa salinidade favorece e reprodução do mexilhão invasor. Há indícios ainda de que a concentração de coliformes fecais voltou a subir além do aceitável:

— O que nós percebemos no ano passado é que o limite de coliformes estava sendo ultrapassado, especialmente ali na saída de uma tubulação do Jóquei Clube. A Lagoa sempre vai ser um berçário e uma área de proteção e de alimentação para as espécies. Por isso, a qualidade da água tem que estar boa para que não tenhamos uma mortandade de peixes alta — afirma Bruno.

De acordo com a última medição registrada em boletim pela prefeitura, a Lagoa estava em estágio de “equilíbrio” em relação ao nível de oxigênio dissolvido na água (que tinha índices maiores ou iguais a 4 miligramas por litro) e considerada “própria”, em termos de coliformes fecais, ao contato secundário, isto é, à prática de esportes aquáticos, o que não inclui banho.

A Lagoa de ontem e hoje
1500
Região aterrada
HOJE
O Espelho d'água já foi maior. A Lagoa sofreu um processo de aterramento ao longo do século XX, que, estima-se, lhe tirou um terço da área total. Seu formato atual é de um polígono irregular com um perímetro de 7,2 km e a largura máxima de 3 km, com espelho de água de cerca de 2,5 km². Segundo especialistas, mesmo cercada de vegetação, a Lagoa constituía um ecossistema instável, pois recebia detritos das regiões, mais altas, de seu entorno.
Fonte: EOUrbana
A Lagoa de ontem e hoje
1500
REGIÃO ATERRADA
HOJE
O Espelho d'água já foi maior. A Lagoa sofreu um processo de aterramento ao longo do século XX, que, estima-se, lhe tirou um terço da área total. Seu formato atual é de um polígono irregular com um perímetro de 7,2 km e a largura máxima de 3 km, com espelho de água de cerca de 2,5 km². Segundo especialistas, mesmo cercada de vegetação, a Lagoa constituía um ecossistema instável, pois recebia detritos das regiões, mais altas, de seu entorno.
Fonte: EOUrbana

Segundo especialistas, a liberação dessa atividade na Lagoa Rodrigo de Freitas um dia é quase impossível. Ainda hoje, nas margens, há risco de um banhista desavisado contrair leptospirose ou hepatite, observa Moscatelli. No meio, a água é mais limpa e causaria menos problemas à saúde.O biólogo destaca que, apesar de todo renascimento da vida animal, a Lagoa nunca ficará totalmente limpa. Há 200 anos, suas águas, mesmo sem a ocupação humana, nem sempre estavam próprias:

— Ela é um ambiente naturalmente vulnerável. No passado, quando não havia ocupação urbana, já morria peixes. Há 200 anos a lagoa tinha o dobro de tamanho que tem hoje. A barra que separava ela do mar era instável. Quando você tinha um período de ressaca ou uma chuva muito forte, a barra se rompia e os peixes que não tinham como lidar com a salinidade, morriam. Isso sem um pingo de esgoto — lembra Moscatelli. — Hoje a Lagoa está um milhão de vezes melhor do que era na década de 90. Tem o que melhorar? Tem, mas nunca estará 100%, porque é uma lagoa urbana.

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Na Barra, lagoas sem prazo para despoliução

Lagoa da Tijuca (foto) está entre as lagoas da região da Barra e Jacarepaguá que tiveram o processo de despoluição paralisado - Márcio Alves / O Globo

Enquanto a Lagoa Rodrigo de Freitas conseguiu amenizar a poluição dentro e fora do espelho d'água, o complexo lagunar da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá coleciona retrocessos em sua política ambiental. Por causa da crise do estado, os as obras de recuperação da região tiveram o contrato suspenso, como admite e própria Secretaria de Estado do Ambiente, em nota. A despoluição das lagoas da região fazia parte do caderno de encargos dos Jogos Olimpicos de 2016, mas não foi concluída.

Se moradores convivem com o mal cheiro do local (assim como fizeram os estrangeiros durante as competições, em agosto do ano passado), em junho, um temporal de grandes proporções provocou o rompimento de uma ecobarrreira que impedia o lixo de chegar às lagoas de Jacarepaguá, Camorim e Tijuca, lançando detritos nas águas. O biólogo Mário Moscatelli flagrou, na ocasião, até um televisor e uma caixa d'água nas águas das lagoas.

Além disso, os rios que desembocam no complexo lagunar seguem poluídos, já que o projeto que trataria suas águas foi abandonado pela prefeitura. Nos arredores do Parque Olímpico, os rios Arroio Pavuna, de um lado, e Pavuninha, do outro, deságuam na Lagoa de Jacarepaguá como verdadeiros canais de esgoto. Durante os Jogos, foi necessário o uso de um ecobarco para amenizar o acúmulo de lixo nos córregos.